quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

POEMAS D’ “a colheita íntima” SELECIONADOS PARA ANTOLOGIA COMEMORATIVA DOS 50 ANOS DA GUERRA COLONIAL




A convite do CES – Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, os poemas “Lá Longe” e “Na Cubata”, publicados no livro “a colheita íntima” de eduardo roseira,, pela editorial lavra…, em 2003, foram selecionados para integrar a “Antologia Poética da Guerra Colonial” organizada pela Prof.ª Dr.ª Margarida Calafate Ribeiro e pelo Prof. Dr. Roberto Vecchi, integrado no projecto de investigação “Poesia da Guerra Colonial: uma ontologia do ‘eu’ estilhaçado”, que teve lugar no CES da UC, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia e do Ministério da Defesa Nacional, que irá ser publicada sob a chancela da editora Afrontamento.

Ao longo deste projecto foi feita uma vasta recolha de material poético relativo à Guerra Colonial da qual resultou um conjunto de textos de um leque muito variado de autores, e de grande valor para a construção de uma antologia.
Os autores e promotores deste projecto pretendem que esta antologia seja uma forma de assinalar os 50 anos do início da Guerra Colonial.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

CAPA DO LIVRO

Contra-capa do livro


a colheita íntima
de
eduardo roseira
(poesia)

NOTA: A criação deste blog é a forma que o autor entendeu ser mais abrangente e logicamente menos onerosa de fazer uma “segunda edição”. Por tal, apenas serve para publicar através das novas tecnologias o livro que foi editado em papel em 2003 e da parte do autor terá um ponto final. Quem pretender, pode copiar, publicar e fazer uso destes poemas, desde que fazendo sempre referência ao autor e editor, sem ter que pagar quaisquer “direitos de autor”. Assim, apenas solicito que me informem sempre que publiquem ou façam um link deste “blogbook”, podendo fazê-lo para o seguinte e-mail: eduardoroseira@gmail.com.



Título : a colheita íntima
Autor : eduardo roseira
Género: Poesia
Colecção: da palavra… - n.º 1
Edição, propriedade e distribuição:
lavra…
EDITORIAL
Rua Pereira da Costa, 156 - 2º.
4400 - 245 Vila Nova de Gaia
Portugal
Telemóvel : 966 238 966
e-mail : lavra.poesi@iol.pt
Direcção gráfica : Estratégias Criativas
Imagens da capa e contracapa : Luís Nogueira
ISBN : 972 – 98862-2-9
Depósito Legal : 195450/ 03
Tiragem : 500 exemplares
Ano de publicação: 2003



O Autor:

eduardo roseira é jornalista, poeta e animador da palavra.
Nasceu no Porto em 1951 e viveu em Moçambique entre 1962
e 1974. Fundou em 2001 a publicação literária e Editorial lavra…

DEDICATÓRIA

A todos os que contribuíram
pelo bem e pelo mal
para o conteúdo desta “colheita íntima”



a colheita íntima
de
eduardo roseira
(poesia)






ATÉ CHEGARMOS AO MAR

casta
em covas do douro
plantada.

colheita de 51
no porto
encubada.

qual torna viagem
o atlântico
ao indico
me levou.

desembarquei
num mar com sabor
a oriente.

douro de nascença.
chiveve[1] de maturação.
luia[2] de passagem.
nuns deixei presença
noutros o coração
e fui forçada.

o oriente
ao atlântico mar
me devolveu
e fui ao encontro
de um tua
que me fez seu
com a magia do olhar.

eu e os rios,
somos só um.

unidos no correr
temos um percurso comum
nas marés do nosso viver.

é sempre em mim
que os rios vem desaguar.
assim será até ao fim,
até chegarmos ao mar.



BEIRA



recordo com saudade
o teu corpo rectilíneo
à beira-mar estendido.

recordo o odor
do teu corpo
acácia em flor.

recordo como tu
com os teus braços
afagavas como se fosse um menino…
o macúti…matacuane…
ponta gêa…o maquinino…[3]


MUANA[4]
(tentativa de poesia africana)


cai chuva de mazi[5]
que desfaz no quente
da terra de negro.

o muana descalço
proveita p’ra brincar
no matope[6]
junto da palhota

mamana[7] sofredora
lembra seu joão
que anda no mar
ganhando o pão…

pouco
no barco do mezungo[8]
fazendo o serviço da pesca.

mamana pensa triste
que se vai chegar
tempo pior.

o seu joão não vai voltar
e o muana
acaba brincadeira
e sem ter tempo
para chorar
dá um salto na vida
e vai para o mar.


LÁ LONGE
(ao meu amigo muana i’nhama)

lá longe
nas terras de muana
e malangatana[9],
onde o longe
fica ao virar
do mais próximo
dos embondeiros

lá longe
em terras cor malangatana.
onde o tudo e o nada
se cruzam no além.

lá longe
por terras de muana
passou um ingénuo rapaz
que nunca quis ser homem.

lá longe
guerra a guerra
sem o saber
ele fabricou a paz.

hoje
aqui bem perto
navega nas marés do destino
bem incerto
o rapaz que continua
a ser
muana-menino.


NA CUBATA


brilha a lua prata
no céu azul-ultramar.
do perdido da selva
sai da hiena um esgar.

rasgando o fundo da noite
há o som de tambores
qual eco de dor.

na cubata
um miliciano e uma negra
constroem odores
isentos de amor.

o miliciano monta
monta
com ardor.

a negra geme
geme de dor.


BÊBADO NÃO SOU


vós…olhais para mim
dizeis-me bêbado.

não. não e não.
foi a vida que me pôs assim
mas olhai bem
pois bêbado eu não sou.
só bebo para lavar a mágoa
que vai em mim.

não. não te rias.
pois és tu.
sim, tu. Oh! Mundo.
o culpado de eu estar assim.
não bêbado eu não sou.

lavo-me por dentro
para limpar a tristeza
que vai em mim.
sim lavo-me.
com vinho cerveja enfim.
ou já viram alguém
fazer lavagens ao estômago
com sabão?
não. eu também não.
porque lavo eu o estômago assim?
é para limpar o fingimento
a que o mundo me obriga a mim.
sim fingimento.

algumas vezes sou engenheiro
outras poeta doutor
e até já fui cangalheiro.
mas seja lá o que for
bêbado não.
bêbado eu não sou.
não, não te rias de mim.
pois um dia pensa bem
e talvez acordes assim.

não bêbado eu não sou.


TEU ESCRAVO


és minha
sinhá
és minha
mas eu sou teu escravo.

escravo dos teus contornos
escravo do teu odor
escravo do teu povo
e seus adornos.
sou teu escravo por amor.
que por ti é sempre novo.

és minha
sinhá
és minha
e eu serei sempre teu escravo.

escravo de uma chama que em mim arde
e que em letras ouro-azul gravo.
letras que gritam:
- liberdade.
- liberdade.

eu sou teu escravo
tu és minha.
és minha África.
sinhá.



PROSA


ecos repetidos
do rufar de tambores
rasgam o silêncio
nocturno.

ao longe
uma hiena
larga um gargalhar
cinicamente selvagem.

sentados junto da cubata
pai joão
e mamana rosa
gozam a fresca aragem
ao som de uma amena prosa.

nem os ecos repetidos
do rufar dos tambores
que rasgam o silêncio nocturno
conseguem interromper
a doce prosa de pai João
e da sorridente mamana rosa.



VELHO EMBONDEIRO


carinhosamente

o velho embondeiro
enlaça-me
por entre as suas fortes raízes.

ensina-me a lição
de sabedoria dos tempos.
diz-me como ser:
força na fraqueza.
a pedir sem mendigar.
a ser pobre com nobreza.
rico na forma de me entregar.

ensina-me o dom de:
ser sol mesmo se triste.
a perante as mais altas muralhas voar.
a ser calma que resiste
sem nunca se entregar.



ESPERA


recostado entre as raízes
do velho embondeiro
(sempre o mesmo embondeiro)
busco no firmamento
noite após noite
(sempre e só de noite)
o tudo que espero
a todo o momento.

de dia
repouso o olhar
nas flores
(sempre as mesmas flores).

ainda recostado
no aconchego protector
do velho embondeiro
(sempre o mesmo embondeiro)
hora após hora
até que chegue
mais uma noite
(sempre e só a minha noite).

e é sempre de noite
e é sempre à espera
que aguardo
noite após noite
nova noite de espera.



MEU CORPO ÁFRICA

a minha cabeça
é uma verde papaia.

os meus olhos
são duas ágatas.

o meu tronco
um grande cajueiro.
os meus membros
são amos de micaia.[10]

no lugar de veias
tenho raízes de palmeira
em vez de sangue
nelas corre água do zambeze.

o meu coração
é uma marimba de zavala.[11]
minha mente
é uma imensa gorongosa.

tudo isto sou e sinto
como verdadeiramente meu.

no entanto
porque tenho pele branca,
chamam-me europeu.

cegos
não conseguem ver
que este corpo sou eu.
este corpo
é o meu corpo África.



AFRO-ÍRIS


era azul-mar
o verde tempo menino.

era rubro-céu
o raiar vida.

era negro-dor
o incerto destino.
era alva-paz
o luto da partida.

era íris-cor
a paleta do sentir.
era rosa-amor
o ter-te por companhia.
era multicolor
a razão do existir.

são áfrica-cor
as razões da poesia.


CÓDIGO DE BARRAS

era Abril de1974
soltavam-se as amarras.
hoje os políticos são só retrato
e nós um código de barras.



REGRESSO

cheguei vestido
de sol e sul.

com aromas do Índico
perfumado.

tendo o nordeste
como destino
e norteado pelo futuro
adivinhado
que alcancei
através de um caminho
frio e agreste.

contra mil marés
remei
remei.

fui mar fui rio.
tempestades defrontei.
outras ignorei
em constante desafio
e sem embaraços.

até que enfim desaguei
na ternura dos teus braços.


SAUDADE DE I’NHAMA


iuaé.[12]
Iuaé.
i’nhama.[13]
oh i’nhama
buera[14] cuno[15]
uco[16]
tchimbidza[17]
muana[18] ti tá chamando.

onde estás tu agora
i’nhama meu amigo
companheiro de outros luares?
responde i’nhama
tchimbidza.
diz-me lá se tens saudades
da sinhá
do mezungo[19]
e dos mininos?
diz lá i’nhama
tens?
não é. pois é.

iaué.
iaué.
i’nhama.
oh i’nhama
escuta é muana
quem te fala
com saudade no coração.
juro mesmo.
chicuembo[20] xanháca da catembe[21]
acredita meu irmão
a saudade não é muita
é maningue[22] mesmo.

eu sei que vim no famba[23]
mas tu sabes que a culpa
não foi minha não.

de quem foi?
eu também não sei não.
mas isso que importa
se o ódio, a raiva
não matam a fome
ao coração.

iuaé.
Iuaé.
i’nhama.
oh i’nhama
por favor não fala mais não
eu sei que tu sabe
que a minha saudade
de i’nhama
é igual à necessidade
que i’nhama
tem de i’nhama.

disculpa meu irmão.


ABRIGO


eu com um maremoto
no coração
e o inferno prometido
náufrago
quase morto.

tu surgiste
qual onde de renovação
e deste-me abrigo
na foz do teu corpo.


QUERO


quero descobrir
a ilha deserta que tu és.

quero entender
o enigma que em ti existe.

quero viver o teu sentir
e sentir o teu viver.

quero ser esperança do teu sofrer
e renascer do teu sorrir.

quero ser o teu pensar
e pensar o teu querer.

se me perguntares
o por quê do meu quero,
digo-te que quero
porque quero
ouvir-te dizer
quero.



PERCORRER O TEU CORPO


percorrer o teu corpo
e vesti-lo com as minhas mãos.

cobrir-te pouco a pouco
dos teus seios irmãos
aos teus pés chão.

percorrer
o teu corpo labirinto
e encontrar-me dentro de ti.

e num ímpeto
suave e louco
descobrir o amor
que há em ti.


DOIS CORPOS


dois copos vazios.
a surdina de um sax.
dois corpos num leito
unidos em amor
feito sexo.

beijos.
carícias.
gemidos.

dois corpos nus
como um só.
abraços e incontidos gestos.
dois corpos juntos
num nó.

dois corpos amados.
lençóis em desalinho.
dois corpos cansados.
plenos de carinho.

o sax em surdina.
continua a ouvir-se.



CORPOS NÚS


peitos a arfar
corpos nus e suados
ofegante respirar
num transpirar de desejos.

no seio de bico rosado
uma língua se passeia.
é todo ele abocanhado
em permanente vibrar
e constante anseio.

corpos nus
vestidos de amar.

entrega completa
num receber e dar
que os amantes incendeia.

corpos nus
em cadência sempre desperta
que ao amor fazem a teia.



CORPO IODO


saborear
teu corpo iodo.

tua salina lágrima
acariciar.

sondar tua alma
com o meu todo.

mergulhar
no teu ventre mar

e afogar-me
na fogosidade
dos teus afagos.



IMPRESSÕES DE VILAR DE MOUROS


1

rubro céu
alvorecer
montes cinza
amanhecer.

aves
chilreiam
o silêncio do verde
monte
com odores azul
mar.

2

o menino
repousa no
cansaço do seu brincar.

o sono atento
da mãe
dá-lhe a paz
do estar.

3

adormece a noite
breu temor.
embala-a o sol
raiado.

o menino ergue-se
do sono embalado
na esperança de
novo dia
águas riso
sonhado.



ARTICULAÇÕES


é alta a noite.

vai cedo a madrugada.
de quando em quando
um automóvel passa.

ouço-o como se longe ele passasse.
já não me acordam
os barulhos dos motores.
nem mesmo quando
uma louca motorizada
passa lentamente
com ráteres ensurdecedores.
já nada me acorda.

é alta a madrugada.
a noite deu lugar à claridade.
a incomodar-me nada.
nem o acordar da cidade.

eu na cama continuo.
sou vira-que-vira
em voltas
para um e outro lado.
já nada me acorda.

não distingo
quando penso
ou se sonho
tal o labirinto de sensações.
(talvez seja confusão
ou o peso da idade?)
só uma coisa tenho
como certa.

que é o acordar
com a sonoridade
do estalar
das minhas articulações.


ZÉ-NÍNGUEM


de olhos cerrados
vêem o futuro
que não existe.

de braços cruzados
acolhem a esperança
que não chega.

de corpos caídos
dormem a fadiga
do cansaço que não têm.

quando chegam a casa
lavam o suor
que lhes cai pelo corpo
devido ao esforço
da labuta de mais um dia

sem trabalho.

á noitinha,
de barriga vazia
em reza agradecem
o pão-nosso de cada dia
que ignoram quando chega.

quem são eles?
são quem são
sem serem alguém.
mistura do sim e do não
por serem:
os “zé-ninguém.”


A COLHEITA ÍNTIMA


além-douro fui gerado.
nos oceanos fui ilha.
do mundo sou parte ínfima.

com o bem e o mal fui tratado.
hoje quero ser partilha
desta colheita íntima.





[1] - rio da cidade da Beira, Moçambique
[2] - afluente do rio Zambeze, Tete, Moçambique.
[3] - bairros da cidade da Beira, Moçambique
[4] - menino, rapaz
[5] - água
[6] - barro, lama
[7] - mãe, mulher
[8] - homem branco
[9] - pintor moçambicano
[10] - árvore africana de pequeno porte, cujos ramos tem muitos e fortes espinhos
[11] - Zavala – pequena localidade do sul de Moçambique, conhecida pelos seus tocadores de marimba (instrumento musical), onde uma vez por ano se realiza uma festa em que os tocadores e dançarinos de Zavala actuam ao longo de 24 horas ininterruptamente
[12] - ei, eia
[13] - carne, peixe assim era o nome de muana
[14] - anda
[15] - cá, aqui
[16] - já
[17] - rápido, depressa
[18] - menino, rapaz
[19] - branco, patrão
[20] - feiticeiro, feitiço
[21] - vila fronteiriça a Lourenço Marques (actual Maputo) onde vivia/exercia um feiticeiro chamado Xanháca. O termo “Juro chicuembo Xánhaca da Catembe” era o mesmo que jurar (“valores” à parte) por Deus
[22] - muito, bastante
[23] - sair, ir embora